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quarta-feira, 26 de maio de 2010

O tempo errante do fazedor de relógios

    Morava no final da rua Salubre, em um luxuoso casarão que pertencia à sua família desde que o tempo é tempo. Contudo, não se pode dizer exatamente que a casa habitaram. Cada membro antepassado passara mais tempo no pequeno galpão no fundo da propriedade. Uma oficina. Na porta de madeira, a pintura já descascando, e um relógio com ela pintado marcava um horário em ponteiros que nunca mudavam de lugar: 07:40. A hora em que o relojoeiro começava o trabalho do dia.
    Fazia relógios de quase todos os tipos e tamanhos. Não todos os tipos, porque odiava relógios digitais. Dizia serem uma ofensa a arte de marcar o tempo. Um elemento tão primoroso merece ser contado com ponteiros feitos de metal precioso, e a estrutura do objeto merecia um refinamento digno da beleza das coisas mais belas. Nada de traços grotescos. Só delicadeza. Eram os relógios mais caros da região. E os mais bem feitos que qualquer um jamais vira. A demanda sempre fora grande.
   E era "negócio de família". Não, não tradição. Ele não gostava que assim denominassem. Tradiçao era uma palavra fria demais para um homem que nunca se apercebia da passagem do tempo. Para ele, cada relojoeiro do qual era descendente ainda praticava tal profissão. Não estava mortos. Todos incorporavam seus espíritos e se tornavam um só toda vez que o relojoeiro fazia seus relógios. E esse foi seu maior erro.
   Graças à seus relógios, esqueceu de viver. Esqueceu que havia um mundo além da oficina. Esqueceu que haviam pessoas passendo nas ruas, folhas balançando ao vento, rios refletindo o céu, divertidas e estreladas noites em bares e restaurantes. Esqueceu que todos crescem, e não nascem já grandes demais. Apaixonam-se, casam e tem filhos...netos. Esqueceu de amar alguém. E, acima de tudo, esqueceu que todos morrem. Esqueceu que o tempo passa...até mesmo para um fazedor de relógios.
   Um dia, na oficina, um forte baque no coração. Sem conseguir ficar de pé, o relojoeiro caiu no chão. À frente, um velho espelho, nunca usado, e uma imagem que ele nunca havia percebido. Na superfície do espelho, flutuava um rosto pálido e velho demais para erguer-se sobre qualquer pescoço. Pensou que era o rosto de seu avô, ou seu pai, pois parecia-se com eles. Por fim, percebeu o cruel. O velho de cabelos brancos era o próprio relojoeiro, ali, caído ao chão como um marionete.
   Perguntou-se como havia envelhecido tanto? Quando havia, ao menos, envelhecido?
   O tempo sempre pareceu ao relojoeiro pertencer. Tão esplêndido tal elemento se fazia nas mãos dele. Fizera do tempo mais do que um sustento. Dele substraíra sua vida. Uma obra de arte.
    Um fatal obra de arte.
     Dizem que, no fim de tudo, lembramos de tudo que vivemos. Aqui há uma exceção. Ele não se lembrou de tudo o que viveu. O que de tão interessante em passar a vida literalmente toda em uma oficina de relógios? Lembrou-se do que não viveu; e foram tantas as coisas! Um pensamento doloroso demais.
     Sem banhos no mar, ou na chuva. Sem danças empolgantes, ou admiração das estrelas, ou bolhas de sabão. Sem jogos de futebol. Sem afeto. Sem mulher. Sem filhos. Sem vida; o maior arrependimento.
     Eram os últimos segundos quando percebeu que o tempo a ele não pertencia, como sempre imaginara. Nunca lhe havia pertencido. O tempo não o havia poupado, mesmo com todo cuidado que ao mesmo dera. Amaldiçoou-o por isso.
    Um último suspiro e qualquer pensamento seu silenciou-se para sempre.
    Pobre relojoeiro.
    Em sua mão, agora para sempre inerte, a mesma que havia ajudado tantos a marcar o tempo, o último relógio, que ele havia forjado há poucos minutos, vivia seus primeiros instantes, mas o seu som sempre fora e sempre será eterno. Talvez você saiba, ele vai assim: TIC TAC, TIC TAC, TIC TAC...

Um comentário:

  1. Texto muuuito bom mesmo!
    super interessante!
    Parabens ´BG!
    obs:vou voltar a postar tambem - estava estudando pra uma prova, mas já passou!
    obs'':quando postar o proximo texto, coloque 'b' onde tem "marcadores" que ira aparecer 'Bruna Guimarães'!!
    bjos!

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